Para Uma Carta de Princípios do Jornalismo na Era da Internet

Introdução

A Carta de Princípios do Jornalismo na Era da Internet culmina uma reflexão crítica desencadeada pelo Projecto Jornalismo e Sociedade (PJS) e que envolveu, ao longo do ano de 2012, cerca de 1 300 estudantes, docentes, jornalistas, gestores e empresários de comunicação social, opinion makers e outros cidadãos.

A iniciativa inspirou-se no resultado de um diálogo entre os jornalistas e a sociedade norte-americana, promovido pelo Committee of Concerned Journalists, uma organização que era, na altura (1997), administrada pelo Project For Excelence in Journalism, do Pew Research Center. O livro The Elements of Journalism (Kovach & Rosenstiel, 2001; Porto Editora, 2005), sintetizou esse diálogo em nove princípios que procuraram definir o jornalismo e o seu papel na sociedade. Em 2007, numa edição amplamente revista e actualizada, os autores acrescentaram-lhe um 10º princípio sobre direitos e responsabilidades dos cidadãos.

Com as devidas adaptações de lugar, de tempo e de cultura profissional, desafiámos a universidade, o campo jornalístico e os cidadãos em geral a reflectirem sobre o que deve ser o jornalismo, o trabalho dos jornalistas, o papel e as expectativas dos cidadãos portugueses na idade da Internet.

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Apesar da ampla base de reflexão que sustentou a sua elaboração, a Carta de Princípios que apresentamos não pretende substituir-se e muito menos impor-se aos códigos do grupo profissional de jornalistas, donde, de resto, não emana e que muito menos representa. Elaborada no âmbito de uma investigação académica, ela ambiciona tão só dar um contributo reflexivo na enunciação, estudo e debate de alguns dos grandes desafios que questionam o jornalismo tal como o conhecemos e os jornalistas o praticaram durante o século XX.

1. A primeira obrigação do jornalismo é a busca da verdade e a sua publicitação

A “verdade jornalística” é a melhor aproximação à verdade conseguida até ao momento da sua publicação. Não se trata, assim, da verdade em sentido absoluto ou filosófico. A busca da verdade jornalística consiste na pesquisa, recolha, verificação e confronto de dados informativos e traduz-se num relato rigoroso dos factos apurados e do seu significado, válido no momento, susceptível de posterior evolução e aprofundamento. Desenvolve-se em dois tempos diferentes – o da actualidade, marcada pela urgência; e o da investigação, que se propõe ir muito para além da espuma dos dias. A publicitação, por seu lado, implica um processo de hierarquização e destaque (na paginação, no alinhamento, na colocação em linha), que não deve deturpar ou comprometer o significado ou a importância da informação apurada. A procura, sempre em aberto, da verdade dos factos implica e exige a pronta rectificação das informações que se revelem inexactas ou falsas.

2. O jornalismo deve manter-se leal aos cidadãos, estimulando o debate e a construção de opinião

O exercício democrático pressupõe um conhecimento informado do que é do interesse público, a partir de uma pluralidade de olhares e de pontos de vista proporcionada por uma informação sem fronteiras e um confronto de ideias aberto. O jornalismo constitui-se, desta forma, num serviço a favor da cidadania, da liberdade e da democracia. Enquanto as empresas de média respondem a vários interesses legítimos (neles incluindo os dos accionistas e anunciantes), os jornalistas que nelas trabalham devem manter-se fiéis ao compromisso com os cidadãos, assumindo a produção de notícias sem medos ou favorecimentos a quem quer que seja. Esta é a base onde assenta a credibilidade das organizações jornalísticas, que ganham também em dela cuidar.

3. A essência do jornalismo assenta na verificação da informação e no confronto de fontes e de versões

O que distingue o jornalismo – tal como o conhecemos e os jornalistas o praticaram durante o século XX – de outras formas de informação que chegam aos cidadãos através dos novos media e das redes sociais é o seu compromisso com as regras e procedimentos que certificam a informação prestada aos leitores/ouvintes/espectadores/utilizadores. A validação das informações é alcançada através do cumprimento de uma disciplina de verificação que tem como instrumentos centrais a pesquisa e o exame continuado de dados e de factos, o confronto de diferentes fontes e testemunhos e, sempre que possível, o olhar directo do próprio jornalista.

4. O jornalismo deve escrutinar os diferentes poderes. Aqueles que o exercem devem ser independentes em relação às pessoas, organizações e acontecimentos que cobrem

Denunciar os abusos daqueles cujo poder e posição mais podem afectar cidadãos subjaz ao conceito de liberdade de imprensa. É uma defesa da sociedade contra a tirania e o nepotismo. Os jornalistas têm obrigação de não a desbaratar em usos fúteis, e na prossecução de interesses comerciais ou pessoais. Esta função de vigilância e fiscalização, tradicionalmente focada nos poderes públicos, deve ser alargada a pessoas, instituições ou grupos, formais ou informais, cuja actuação seja publicamente relevante. O seu cumprimento exige condições de independência e de autonomia dos jornalistas e das redacções.

5. O jornalismo deve tornar interessante o que é relevante e procurar no que é interessante ou mobiliza a atenção dos cidadãos o que é importante e significativo

Os jornalistas devem questionar-se em permanência sobre qual a informação mais relevante para os cidadãos e qual a forma, simultaneamente mais apelativa e rigorosa, de a apresentar. Combinar interesse público e interesses dos públicos permanece como um dos grandes e mais permanentes desafios enfrentados pelas redacções. Num ambiente comunicacional marcado pelo infoentretenimento nas suas diferentes e mais díspares declinações, torna-se necessário as redacções não eliminarem da agenda, devido a preconceitos culturais, de classe, de estatuto, ou outros, temas (muitas vezes apenas aparentemente) menores que concitam o interesse das audiências. Antes, devem esforçar-se por descobrir neles os motivos, sociais ou outros, na base desse interesse. Tal não deve fazer esquecer, contudo, que um jornalismo obcecado com trivialidades, em última instância, contribui para uma sociedade trivial.

6. A produção jornalística deve seguir princípios de rigor, isenção, clareza, abrangência e proporcionalidade, e deve empenhar-se em dar voz e visibilidade a cidadãos, grupos e comunidades mais esquecidas

Contexto, interpretação, comentário, crítica, análise e debate, marcas distintivas da oferta jornalística, constroem-se sobre os alicerces do rigor, da isenção e da clareza. Inflaccionar acontecimentos por sensacionalismo, estereotipar ou ser desproporcionadamente negativo, omitir, distorcer ou confundir, tudo isso resulta numa representação pouco confiável da realidade social. Dela não devem estar excluídos cidadãos, grupos, comunidades, mundos distantes, por razões do sexo, raça, nacionalidade, idade, classe social, geografia, instrução, religião, orientação sexual, ou outras. As redacções que integram diversidade de origens e perspectivas são as mais aptas a reflectir esta preocupação.

7. Os jornalistas devem ser livres de seguir a sua consciência

O jornalista deve ter um sentido pessoal de ética e responsabilidade – uma bússola moral. Deve estar disposto, se a veracidade e a lealdade aos cidadãos o exigirem, a expressar e debater divergências com colegas ou com a hierarquia. As empresas fariam bem em alimentar esta independência, encorajando-a. Ela estimula a diversidade intelectual, necessária para perceber e dar a conhecer uma sociedade cada vez mais complexa. Independentemente do direito à cláusula de consciência, corolário das garantias constitucionais de independência e autonomia, bem como, por outro lado, do respeito pelos estatutos editoriais dos respectivos media, previamente conhecidos, o jornalista deve ser livre, ainda, de seguir a sua consciência quando estejam em causa a expressão de opiniões ou o exercício de tarefas que repute contrariá-la ou que falseiem, deturpem ou escamoteiem a verdade dos factos. E não deve, pelas opções de livre consciência, sofrer quaisquer formas de discriminação.

8. O jornalismo deve ser transparente e favorecer o debate público das suas opções e práticas e o escrutínio das ligações, interesses e poderes que o suportam

Porque o jornalismo é uma força poderosa na sociedade democrática, impõe-se também aqui o escrutínio do escrutinador. Escrutínio público não apenas das suas opções e práticas, mas igualmente dos interesses e poderes que estão por detrás dele. Num mesmo quadro de transparência e de prestação de contas que se exige às outras instituições da sociedade.

9. O jornalismo deve adaptar-se às diferentes plataformas informativas e interagir com a diversidade de actores presentes no ambiente comunicacional, integrando as suas vozes no processo de produção profissional de narrativas noticiosas e de opinião

O jornalista deve estar atento à mudança nos vários domínios relevantes para a profissão e inovar desempenhos, tirando proveito de novas oportunidades de informar e aceder a informação. Erodido o controlo único e centralizado detido pelo jornalismo sobre a produção e circulação de conteúdos, informar bem a sociedade implica abrir-se a ela e com ela interagir no processo de produção noticiosa, no qual o papel central e insubstituível dos jornalistas deve ser salvaguardado.

10. Inovações empresariais e tecnológicas no ecossistema informativo devem ser feitas com respeito por padrões de exigência profissional e no quadro ético e deontológico em vigor numa imprensa livre e democrática

A mudança tecnológica, cultural e social repercute-se na transformação dos média, da indústria de média, do mercado de informação e das condições de exercício de jornalismo. A função do jornalismo exige a valorização de novas oportunidades de informar com melhor resposta a interesses de diversos públicos. A sustentabilidade do negócio pede inovação na configuração e disponibilização de plataformas informativas. O compromisso com o interesse público e o respeito por regras e padrões profissionais e por princípios éticos e deontológicos devem balizar estas transformações.

11. Os cidadãos têm direitos e responsabilidades, no que diz respeito à informação noticiosa

Os princípios do jornalismo nascem da função que a informação representa na vida das pessoas. Neste sentido, são uma declaração de direitos dos cidadãos, ao mesmo tempo que uma declaração de responsabilidades dos jornalistas. Na medida, porém, em que a difusão de informação própria e do comentário a assuntos de actualidade e às opiniões de outros aumenta, crescem também as responsabilidades éticas dos que intervêm no processo, do lado da cidadania. O conhecimento e exercício destes direitos e responsabilidades devem integrar a formação não apenas dos jornalistas mas também dos cidadãos, no quadro mais vasto e desejável de uma literacia mediática que proporcione o uso crítico, esclarecido e criativo da informação jornalística e dos media.

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Nota de MP:

Este documento foi apresentado publicamente em Lisboa, no passado dia 3. Para uma perspetiva mais minuciosa dos passos dados até à formulação dos 11 Princípios, recomendamos a leitura integral do texto introdutório: AQUI.

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