O “caso das escutas”, para além das sérias implicações políticas que obviamente tem (mas que não são chamadas a este espaço), suscita um conjunto complexo de questões no plano jornalístico — seja ao nível das práticas profissionais, seja ao nível ético e deontológico. Entendo que é algo simplista reduzir a questão ao facto (grave) de o DN ter publicado correspondência privada entre jornalistas e denunciado uma fonte de informação do PÚBLICO. Há, para além desta, outras questões que merecem reflexão ética, pois talvez nos ajudem a entender melhor certos descaminhos da informação jornalística que têm contribuído para a sua crise de credibilidade. A este respeito, será útil ler o que tem sido publicado nos diversos jornais, incluindo aí, obrigatoriamente, as duas últimas crónicas do Provedor do Leitor do PÚBLICO.
Para além das interrogações que continuo a colocar-me quanto a este “caso”, uma certeza tenho pelo menos: ninguém sai muito bem de toda esta história.
O DN não sai bem por três motivos essenciais:
1) Parece hoje claro que a sua forte manchete da passada sexta-feira, 18/9, não resultou propriamente de uma aturada investigação jornalística própria, mas da simples aceitação de um e-mail interno do PÚBLICO que lhe foi oferecido por uma fonte confidencial. O mesmo e-mail foi, tanto quanto se sabe, oferecido pelo menos a mais um jornal (o Expresso), que entendeu não o divulgar nos termos ou no timing desejado pela fonte. E o timing é um ponto relevantíssimo: se interessava tanto à fonte que tal e-mail fosse divulgado precisamente agora, em meio da campanha eleitoral (quando é certo que ele datava já de Abril de 2008…), o jornal devia interrogar-se sobre isso e questionar-se sobre se não estaria, porventura, a ser instrumentlizado por alguém com intenções não jornalísticas. O timing, portanto, não foi definido pelo jornal — mas pela fonte que lhe passou os documentos. E dizer que as notícias não podem esperar (sobretudo quando são notícias que nos são ‘dadas’ por alguém num momento muito espécífico) releva de uma ingenuidade que não tem lugar neste mundo complexo…
2) Da leitura do trabalho do DN, parece poder inferir-se que o jornal não fez praticamente nenhuma investigação suplementar em torno do assunto, limitando-se a reproduzir (ou a apresentar com a aparência gráfica de um e-mail verdadeiro…) o que lhe foi passado pela fonte. Confirmar o carácter genuíno de informações facultadas por terceiros, apurar a veracidade de imputações, dar a todos os acusados a possibilidade de se pronunciarem, etc., são procedimentos essenciais do jornalismo que poderão ali ter sido seguidos, ao que parece, de forma bastante apressada. Até porque também se sabe hoje, por informações entretanto vindas a público, que o jornal terá tido pouquíssimo tempo (um dia?…dois?…) entre a altura em que lhe foram dados os documentos e a decisão de os publicar.
3) O DN revelou publicamente uma troca de correspondência privada e expôs publicamente a fonte de informação de um jornalista. Estes são actos de uma enorme gravidade, que, no plano ético, só se justificam muito excepcionalmente, quando está em causa um inquestionável interesse público e – sublinho este ponto – quando não há outras maneiras de servir esse interesse público. Já houve um ou dois casos, em Portugal, em que jornalistas revelaram as suas fontes de informação, devidamente autorizados pelo seu Conselho Deontológico, face à enorme gravidade das situações. Pergunto-me se, no caso em apreço, o mesmo se justificava. Pergunto-me se o interesse público (ou político?…) o exigiria de facto. E pergunto-me, sobretudo, se o jornal não teria outros modos de tratar o assunto sem expor publicamente correspondência privada com nomes (sabendo que com isso estava a denunciar uma fonte confidencial de um outro jornalista). Ao fazer o que fez, deixa a dúvida se não cedeu também a uma ‘agenda’ que nada tem de jornalística: dar uma ‘ferroada’ a um jornal concorrente e associá-lo a determinados processos políticos. Claro que ir por outro caminho dava mais trabalho, implicava mais investigação própria e levava mais tempo. Mas são as exigências do métier…
Dito isto, também entendo que o PÚBLICO não sai muito bem desta história:
1) Parece hoje claro que a notícia sobre a existência de eventuais “escutas” em Belém não tem, até ao momento, nenhum dado concreto para além da suspeita de um elemento (não identificado) do ‘staff’ de Cavaco Silva de que talvez haja “escutas” em Belém… Diz uma velha máxima do jornalismo que “as suspeitas não se publicam; investigam-se”. E foi isso, aparentemente, o que o PÚBLICO fez: investigou o único elemento concreto que lhe foi apontado como estando na base dessas suspeitas, ou seja, o alegado comportamento estranho de um assessor de José Sócrates durante uma visita de Cavaco Silva à Madeira, em 2008. Concluída a investigação (com envolvimento do correspondente do jornal na Madeira), o PÚBLICO concluiu que as suspeitas não se confirmavam. E por isso deixou cair o assunto. Ora, se assim foi, e se não surgiu um único elemento de prova novo (para além da renovada suspeita genérica de um membro do “staff” de Belém), por que decidiu avançar com a notícia em Agosto de 2009? Se decidiu não publicar a mera suspeita em Abril de 2008, por a ter investigado e não a ter confirmado, por que decidiu publicar essa mesma suspeita em Agosto de 2009, quando nada de novo encontrara? Esta decisão, aparentemente pouco suportada em critérios jornalísticos, não autorizará a dúvida de que haveria aqui uma ‘agenda’ política oculta– como sugere o próprio Provedor do Leitor?
2) Um jornalista do PÚBLICO pode queixar-se de não ter sido tratado correctamente pela sua Direcção e/ou pelos seus colegas de Redacção: o correspondente da Madeira. Foi ele que, em Abril de 2008, recebeu a incumbência de investigar as suspeitas de Belém relativamente ao tal assessor de Sócrates. Das conclusões a que chegou (ou seja: que nada se confirmava) deu conta aos seus colegas do PÚBLICO. Mas agora, em Agosto de 2009, o episódio do assessor de Sócrates na Madeira foi recuperado, e contado como se o correspondente da Madeira nada tivesse feito… Não seria lógico que o PÚBLICO, ao evocar o episódio, fosse também recuperar as conclusões da investigação jornalística feita pelo seu correspondente no Funchal? Ao esquecer esse ‘detalhe’, não estará a ter também um comportamento eticamente reprovável, fazendo de conta que as suspeitas continuavam a merecer algum crédito, quando já sabia que elas não mereciam crédito nenhum?
3) O conhecimento de alguns pormenores da negociação entre um jornalista e a sua fonte de Belém, lido agora à luz do que foi publicado como consequência desse contacto, sugere que se pode ter ido longe de mais — e que o resultado terá sido exactamente aquele que interessava à fonte, mas não aquele que interessava a um jornalismo investigativo sério, cuidadoso e desenvolvido com autonomia de critérios. Se daquela negociação nada tivesse resultado (como sucedeu num primeiro momento, em Abril de 2008), tudo estaria bem: a fonte tentou levar ‘a água ao seu moinho’, como tem todo o direito de fazer, os jornalistas tomaram devida nota mas fizeram o trabalho complementar que lhes competia e, nada se tendo provado, nada se publicou. Mas, mais de um ano depois, e continuando a nada se provar, lá se publicaram as suspeitas que a fonte transmitira… Assim, parece que, mesmo sem quaisquer provas, a fonte sempre conseguiu levar a água ao seu moinho, com a aparente cumplicidade (activa ou passiva) dos jornalistas.
Em resumo:
De tudo isto decorre que podemos não estar apenas perante uma situação em que um jornal expõe publicamente uma fonte confidencial de um jornal seu concorrente, mas também perante uma situação em que um jornal expõe publicamente uma (ou uma tentativa de) manobra de manipulação de informação, de motivações claramente políticas, feita por Belém com a conivência de outro jornal. E se a primeira é grave, a segunda não o é menos. Ambas nos suscitam sérias reflexões sobre os modos como o jornalismo, sobretudo na sua relação com o mundo da política, pode perder a sua autonomia e a sua lógica específica, deixando-se (mais ou menos voluntariamente) capturar por interesses e agendas que não são as suas — e que ele, aliás, se devia preocupar em denunciar. Se denuncia episódios semelhantes quando envolvem apenas os políticos ou outros responsáveis de instituições públicas, não pode fechar os olhos ou desculpar quando alguns dos actores são jornalistas.
Neste momento, como é de praxe, anda toda a gente muito mais preocupada com os mensageiros do que com as mensagens (quem deu?… quem passou?… quem enviou?… quem disse?…). Isso importa, sem dúvida, até para que certos comportamentos eticamente reprováveis não fiquem impunes. E importa igualmente para perceber as reais motivações dos diferentes protagonistas de todo este imbróglio. Mas importa também que a preocupação quanto aos ‘mensageiros’ não nos faça esquecer o conteúdo das próprias ‘mensagens’ — e que este episódio sirva para uma reflexão aprofundada, com a necessária dose de auto-crítica, sobre alguns descaminhos do nosso jornalismo. Elementos de reflexão não faltam na história.
P.S. É evidente que, olhando para o assunto mais no plano político, também Cavaco Silva sai muitíssimo mal deste ensarilhado caso. Enquanto ele não se dignar explicar aos cidadãos portugueses o que há de sério ou de infundado nestas histórias todas, assumindo as responsabilidades que tem ou esclarecendo-nos sobre o uso indevido do seu nome, teremos toda a legitimidade para pensar que ele, por acção ou por omissão, de algum modo se intrometeu nas disputas político-partidárias. Precisamente aquilo que ele sempre diz que não quer fazer… Os silêncios também falam.
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